segunda-feira, 27 de setembro de 2010

TIRIRICA E O PRECONCEITO SOCIAL



Pretendia a algum tempo escrever alguma coisa sobre a candidatura do Tiririca à Câmara Federal, para discutir a indignação das classes "superiores" com o fato. É incrível como nestes momentos aflora o mais recolhido dos preconceitos. Então é assim: o Tiririca serve para entorpecer a ratatulha que assiste a tevê, mas não serve para ser deputado? Mas não foi necessário porque encontrei este excelente post de autoria do Brisola Neto, que transcrevo abaixo:


TIRIRICA E A MASSA MAL CHEIROSA


Não faço gracinhas nem piadas para ganhar votos. Não acho que o palhaço Tiririca seja o melhor candidato ao Legislativo. Nem mesmo o acho engraçado. Mas estou indignado contra esta onda elitista que se faz contra sua candidatura alegando que ele não sabe ler e escrever.


E daí se ele sabe apenas garatujar seu nome? E daí que ele seja desdentado? E daí que ele seja alguém que conseguiu projeção de um jeito esquisito?Quem achou que ele deveria ir para a televisão tem anel de doutor.


Quantos doutores picaretas há candidatos? Quantos “galãs” estão aí se candidatando sem discurso, sem propostas, sem compromissos?


Pode ser que Tiririca, eleito, seja apenas uma figura folclórica. Mas há dezenas de senhores bem apessoados que, se eleitos, serão apenas nulidades e, pior, tenham ambições de riqueza muito maiores que as do Francisco Everardo da Silva, nascido lá em Itapipoca, no Ceará.


Acho mais fácil dizer ao Tiririca, na hora de votar a redução da jornada de trabalho: Tiririca, os teus conterrâneos que trabalham lá em São Paulo não têm o direito de ter mais um tempinho com mulher e os filhos, do que falar o mesmo com um cidadão que tenha mais berço do que coração e que venha argumentar com “competitividade” e “custo Brasil”.


Não vi nenhuma indignação quando se trata de colocar o Tiririca nos lares e milhões de brasileiros, pela televisão.


Mas é provável que cassem sua candidatura, porque a elite brasileira acha que a política é só para a elite.


Fizeram um escarcéu quando fotografaram Lula, na sua vida privada, carregando uma geladeira de isopor. Aquilo é coisa para “inferiores”, não é?


Havia, no PDT do Rio de Janeiro, uma figura chamada Severino Pé-Pé. Era um mendigo, ou quase isso. Meu avô sempre pedia que o deixassem entrar nas reuniões do PDT, mesmo quando ele já estava um pouco alterado. Dizia: “deixa, deixa ele falar, porque ele é um homem que não tem nada a perder nem a ganhar, vai falar com sinceridade”.


Severino era um indigente, como se costuma dizer. Mas não era um bronco, ao contrário, era um homem até com a erudição de recitar Castro Alves horas a fio. Não se sabe o que o jogou à rua, uma desilusão, uma tragédia humana, um amor.


Mas o Severino que pedia, algumas vezes, uns reais para um trago, nunca pediu mais que isso.


De quantos doutores se pode dizer o mesmo?

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Pequenas mas grandes diferenças

Um dos argumentos mais usados para minimizar a importância de Lula no desempenho da economia brasileira é o de que o governo que está terminando apenas deu continuidade às políticas do governo anterior, tidas como boas e acertadas. Esta sensação de continuidade talvez exista na mente de alguns porque Lula não fez nenhum pacote, não fez rupturas, não criou planos com nomes de moedas, com nome de ministros, com nome de estações climáticas, etc. Por isso, este argumento é de uma enorme obviedade e de um irrelevância não menos chamativa.

Obviedade porque evidentemente não é possível fazer desaparecer o governo que o precedeu, da mesma forma que este não pode eliminar o governo que o precedeu, e assim por diante. Assim sendo, todo governo herda queira ou não coisas boas e ruins do anterior. E é irrelevante porque dada a tamanha diferença de resultados nos indicadores econômicos e principalmente nos sociais, que torna-se inócua qualquer apelação a este argumento. Por isso nem é necessário trazer aqui números e estatísticas que provem o que está acima.

- É como se um time ganhasse uma partida por 5 x 0 e o time derrotado reclamasse que o primeiro gol sofrido tivesse ocorrido em impedimento.

Da mesma forma, outra obviedade também é usada, a de que sempre governos posteriores vão ter desempenhos estatisticamente melhores pela simples razão do aumento populacional e o concomitante aumento da produção. Mesmo que seja óbvio, as estatísticas são tão humilhantemente superiores que tornam sem sentido encontrar motivos na administração anterior.

Dito isto, quero dar uma guinada neste ponto para ir onde está de modo claro a grande diferença entre os dois governos: a opção preferencial pelo pobre. Transferindo de forma consistente renda para as categorias mais pobres da população, o governo atual se descolou do anterior e deu um salto cujos resultados serão sentidos muito adiante. Seja através do bolsa-família, dos aumentos suscessivos do salário-mínimo, sempre acima da inflação, e das transferências inéditas para aposentados e pensionistas que agora representam 15% do PIB.

Mas há diferenças mais importantes, que evidenciam a preferência pelo pobre e pelo nosso povo. Recentemente, em 7 de maio de 2010, depois de ter reeguido a indústria naval brasileira, Lula foi a um estaleiro em Pernambuco para lançar ao mar o primeiro navio petroleiro construído no Brasil depois de décadas. Com sutis, mas profundas diferenças. Ao invés do navio receber o nome de algum almirante ou político, recebeu o nome de João Cândido, brasileiro, marinheiro, negro, filho de escravos e herói da revolta da Chibata, na luta contra a escravatura. E mais, ao invés de alguma primeira-dama ou alguma socialite, quem foi convidada para batizar o navio foi Monica Roberta de França, brasileira, negra, soldadora, operária do estaleiro, ex-empregada doméstica e desempregada a anos, que agora tinha trabalho. O país está trocando seus heróis. E o próximo navio irá se chamar Celso Furtado.

Por estas pequenas diferenças, que ficam enormes quando se olha do ponto de vista do brasileiro pobre, do brasileiro negro, que apelar para o reducionismo e a simplificação da inexequível continuidade não encontra respaldo.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

A FALÁCIA DA MERITOCRACIA

Segundo o dicionário, “meritocracia” é um sistema (p. ex., educacional ou administrativo) em que os mais dotados ou aptos são escolhidos e promovidos conforme seus progressos e consecuções; sistema onde o mérito pessoal determina a hierarquia. Este conceito tem sido especialmente lembrado em nossos dias para desqualificar alguns programas governamentais de discriminação positiva como o sistema de cotas nas universidades.

No entanto neste âmbito, trata-se de uma alegação cínica e hipócrita de quem a usa como suporte para perpetuar seus privilégios de geração a geração. Atribuir unicamente ao indivíduo seus fracassos e conquistas pode parecer convincente na visão turva que a elite brasileira tem do mundo real. Para esta elite é cômodo pregar que a conquista de degraus econômicos e sociais deva se basear no mérito, porque afinal seus membros estão melhor preparados para isso. E não só porque estudaram nas melhores escolas, frequentaram os melhores cursinhos de inglês, fizeram intercâmbio, etc., mas porque existe uma rede de relacionamentos que ampara os seus membros.

Qual o mérito de um filho da classe média ou rica em tirar o lugar do filho da faxineira na universidade pública. Não há merito algum, não há justiça, é praticamente um jogo de cartas marcadas. No entanto nossas classes média e rica, acham que ambos têm a mesma chance, são iguais, é só um contra o outro numa prova de conhecimento. Pura hipocrisia. Dizem: -Ah, mas se estudar, qualquer um pode passar no vestibular, rico ou pobre. É verdade, toda regra tem excessão, e a excessão é o filho da faxineira entrar na universidade, como provam todas as estatísticas. Mas não quero me prender muito neste aspecto, vou supor que as condições de acesso a universidade sejam iguais e continuar o raciocínio sobre a ideologia da meritocracia.

Recentemente o IPEA pesquisou o nível de emprego no Brasil e constatou que nas classes inferiores, mesmo com a melhora do próprio nível de escolaridade, o índice de desemprego continuava alto. Mais alto que nas classes mais altas para a mesma escolaridade. Vejam que é outro mito pregado pela elite: se o indivíduo se prepara através do estudo terá mais chances no mercado competitivo. Aqui entra o que falei no segundo parágrafo, a rede de relacionamentos. A rede de relacionamentos é o entorno do individuo, representado pela classe social a qual pertence. Esta é a armadilha da classe média e da classe rica para manter seu status dominante. Como funciona?

Mesmo sendo um aluno medíocre, ou não tenha alcançado grau, os filhos da classe média sempre terão uma rede de apoio dentro da sua classe. Poderá estagiar na empresa do pai do colega, trabalhar em algum emprego médio na loja da amiga da mãe, etc. Mas jamais será um faxineiro. Na classe rica os privilégios são ainda maiores porque ele já sairá como dono, portanto pulará os degraus que os demais precisam subir e será logo diretor ou sócio.

No Brasil a vida e o futuro do indivíduo são determinados pelo local de nascimento. Se nasce na favela ou se nasce nos Jardins ou Leblon. Como discutir desempenho e sua avaliação dentro de um contexto desigual como este. O conceito ideológico do mérito individual parece sedutor a princípio, mas torna-se instrumento de injustiça social quando não atribui importância a variáveis sociais como origem, posição social, econômica e poder político.