domingo, 28 de julho de 2013

A EXPROPRIAÇÃO DA SAÚDE – NÊMESIS DA MEDICINA


Até que ponto as instituições contemporâneas, que deveriam ser geradoras de saúde, são o principal obstáculo a ela ? Como nossa saúde, autonomia e vida deixaram de nos pertencer, tornando-se reféns da “empresa médica”? Essa “contra-produtividade paradoxal”, associada à perda de direitos individuais, foi caracterizada de forma inovadora, em 1975 por Ivan Illich em “A Expropriação da Saúde - Nêmesis da Medicina”. Uma denúncia fundamentada por aproximadamente 300 citações científicas nos rodapés do livro, das consequências da hipertrofia da medicina, que resulta em três níveis de iatrogênese (doença causada pelo médico): clínica, social, estrutural.

Questionador, Illich põe em dúvida os méritos dos avanços da medicina ao afirmar que a morbidade não foi alterada mais pelos médicos atuais, do que pelos sacerdotes e exorcistas. Independente da ação profissional e dos cuidados médicos, 88 epidemias continuam indo e vindo, diarréia e infecções de vias aéreas superiores ainda são as principais causas de mortalidade nos países pobres. Os indicadores favoráveis de morbi-mortalidade devem-se a fatores não médicos, como melhorias na qualidade de vida, alimentação, habitação, saneamento, trabalho, coesão social, cultura, etc.

Iatrogênese clínica, o primeiro dos três níveis, é representada pelos danos nocivos aos pacientes submetidos a tratamentos que são inefetivos, tóxicos e muitas vezes incorretos. Uma pesquisa do Departamento de Saúde Pública Americano demonstrou que 7% dos pacientes internados sofrem injúrias. Os hospitais universitários são os mais patogênicos: 20% dos hospitalizados contraem doença iatrogênica, desses, um em cada 30 evolui para êxito letal. Além disso, as infecções mais temidas por gemes multirresistentes, são adquiridas dentro do hospital.

Iatrogênese social é fruto da dominação destrutiva sobre a sociedade e medicalização da vida. São diversos os processos relacionados a este tipo de iatrogênese, dentre eles: dependência, “etiquetagem”, eliminação do “status” de saúde. A dependência do indivíduo é representada pela incapacidade de adaptar-se ao meio social e perda do poder e vontade de ser auto-suficiente, outorgando esse direito aos profissionais de saúde. A “etiquetagem” iatrogênica decorre da medicação das faixas etárias e categorias sociais, de forma que o leigo encara como natural que as pessoas necessitem de cuidados médicos simplesmente porque são recém-nascidas, crianças, adolescentes, adultas ou velhas. Como se não bastasse, além da medicalização por idade, também é possível enquadrar as fases do desenvolvimento humano. As mulheres são um bom exemplo, pois ao se afirmarem socialmente no século XIX, adquiriram um corpo médico exclusivo (os ginecologistas), submetendo-se a intervenções profissionais pelo simples motivo de estarem na adolescência, período fértil, grávidas, aleitando ou climatério. Uma outra forma de iatrogênese social é a eliminação do “status” de saúde, onde qualquer desvio dos padrões de normalidade é definido como doença e necessita de terapêutica. A saúde deixou de ser uma propriedade natural de cada homem, para tornar-se um sonho inacessível. Mas há limites! Até mesmo aqueles que não estão doentes, mas “exibem” probabilidade que uma tal morbidade apareça, devem se submeter a intervenção médica para o bem de sua saúde futura, ou seja, não é preciso estar doente para ser paciente. A pior face desse absurdo é que as pessoas julgam-se socialmente privilegiadas pelo “direito” de ser rotuladas como doentes, submeter-se a exames, internações e intervenções diagnóstico-terapêuticas.

Porém, dentre todos os tipos de iatrogênese destaca-se como a mais deletéria a Iatrogênese Estrutural, que transforma experiências essenciais da vida de cada ser humano (como a dor, as doenças e a morte), em obstáculos ao bem-estar e obrigam cada um a consumir a instituição médica, a qual vende a idéia de que estar bem significa eliminar a dor, corrigir todas as anomalias, “curar” doenças e lutar contra a morte. A redução do sofrimento á acompanhada pelo aumento da dependência, o que subtrai do homem a capacidade em assumir a responsabilidade por sua transformação; É preferível fugir à dor a qualquer preço, do que lutar contra ela, mesmo que signifique abdicar da liberdade e consciência.

Enfim, de forma polêmica e invectiva, Illich retrata o fracasso do nosso sistema de saúde, representado pela falência administrativo-burocrática das instituições e exacerbada pelo progressivo grau de dependência das pessoas, que cada vez mais necessitam ser cuidadas. Mesmo após trinta anos da publicação de Nêmesis da Medicina os problemas por ele explicitados persistem mais atuais do que nunca, pois nesse período multiplicaram-se de forma geométrica o número de doenças, diagnósticos, consensos e tratamentos...ou seja, a etiquetagem dos indivíduos. Além disso, a “extinção” do médico da família, que conhecia intimamente cada um de seus pacientes, colaborou para o afastamento dos profissionais de saúde de seus agora denominados “clientes”, que são tratados segundo diretrizes e não mais segundo necessidades individuais. No mundo moderno em que a onda de globalização suscita a desumanização, esta é uma leitura obrigatória a todos os profissionais de saúde, uma vez que amplia seus horizontes e permite discernir que o ser humano não morre quando o eletrocardiograma está sem sinal, mas quando o coração para de pulsar.

Rafael Borsoi – Médico.
http://www.flip3d.com.br/web/pub/crmpr/index4/index.jsp?ipg=1522
Revista Iátrico, n.16, jan-mar. 2006, Pág. 16- CRM-PR, Curitiba-Pr.

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