domingo, 15 de maio de 2011
Cinco contra um
Nossa visão do mundo ou da realidade é baseada nas trajetórias sociais individuais e na experiência acumulada. Então vejamos. Os seis amigos na discussão são da mesma idade, mesma origem social, pais de classe média urbana, de nível superior. Estudaram no mesmo colégio particular e todos tem nível superior. Vivem no mesmo bairro. Com uma exceção trabalham no mesmo lugar. Católicos, embora não praticantes. Havia todos os motivos para pensarmos da mesma maneira. Então porque eu sou diferente? Pensei na alternativa restante, a experiência acumulada. Mas o que é experiência acumulada? É o que absorvemos do mundo a nossa volta. O que vemos, ouvimos, tocamos, cheiramos, lemos, etc. É o conhecimento. Isto começa em casa, ao nascer. Mas nossas vidas começaram exatamente iguais. Então não é por aí. É, mas não neste momento. Então, em que momento das nossas vidas a diferença começou? Quando o conhecimento passou a ser obtido individualmente. A partir do momento que você quebra seus vínculos cognitivos com a sua origem social. E isto é muito difícil. Difícil porque existem muitas barreiras a serem vencidas. Primeiro porque é necessário colocar em questão o próprio status patrimonial, e pior, colocar em questão o status da classe social a que pertencemos. Ou seja, a imagem que queremos que os outros, da mesma classe ou da classe superior tenham de nós. Então é mais cômodo e seguro ficar como está. Sem olhar para o lado, sem ler, sem procurar. Afinal, pra quê, se assim está bom? Então esta não é a realidade. Muito pelo contrário, é apenas o mundo que o sujeito quer ver. Os teóricos de filosofia política chamam isto de alienação.
E então qual é esta visão do mundo que os cinco defendem? É a visão individualista do mundo, em que alguns simplesmente por terem nascido dentro das circunstâncias acima, se acham na condição de protagonistas do mundo enquanto os demais ou são coadjuvantes, ou estão atrapalhando.
Não enxergam que se não fosse somente por isso, o nascimento privilegiado, eles próprios ou seriam os coadjuvantes ou estariam atrapalhando. E pior, acham que não têm nada a ver com isto, que o fato de terem estes privilégios não tem nada a ver com os que não têm privilégios. Bom talvez tenha alguma coisa a ver com o divino, o sobrenatural, não sei. Sangue azul?
Defendem a meritocracia, mas somente para os coadjuvantes, porque eles mesmos não a praticam. Acham que os coadjuvantes assim o são porque querem, e que eles mesmos, são privilegiados porque merecem, já que eles próprios não conquistaram.
É a visão daqueles que acham que todos são iguais, mas apenas nas obrigações, mas diferentes nos direitos. Que todos são livres, embora a maioria só sobreviva, porque usufruir do mundo, só para os que têm este direito.
E o que eu defendia, solitário? Defendia um mundo mais solidário, humano, igualitário e justo, em que todos sejam protagonistas. Defendia que enquanto este mundo não chega, que a solução das divergências sociais não deva ser solucionada pela polícia. Que se reconheçam os próprios privilégios como tal, não como direitos. Defendia que não se deve tratar desiguais como iguais. Defendia que pessoas que vivem para trabalhar e sobreviver somente, ainda são escravos.
Pois é, paradoxalmente fiquei sozinho. E isto aconteceu no dia 13 de maio.
domingo, 20 de fevereiro de 2011
QUESTÃO DE PRIORIDADE

A divulgação da intenção de se construir uma quarta ligação Ilha –Continente entre as duas já existentes, causou grande espanto na comunidade. Como tantos outros das últimas administrações municipais, este é mais um projeto errado, ou no mínimo, um remendo de vida curta. O poder municipal tem funcionado assim, toma uma decisão errada, depois tenta corrigir, formando um ciclo vicioso de erros. Mas não quero me prolongar nesta linha, porque essa lista de erros pode ser longa. Não é nem preciso discutir o aspecto estético, ou os acessos desta ponte, pois o erro é ela em sí. Porque? Porque enquanto o poder público ficar procurando melhorias para o transporte individual, não haverá solução para a mobilidade pública. Porque nenhuma dessas soluções viárias para veículos individuais vai resolver. Porque sempre o número de veículos vai aumentar, e novas duplicações, elevados, túneis, etc., serão necessários. Hoje, a maioria das vias não pode mais ser alargada ou prolongada. Já usamos o subsolo, o solo e o ar para passar vias. Então, porque não investir num meio de transporte coletivo ao invés de uma quarta ligação como esta? Há quanto tempo não é feito um investimento de grande porte, em transporte coletivo em nossa cidade? Tudo isso se deve à prioridade aos carros, à escolha preferencial do poder público pelo transporte individual. Priorizar o transporte individual é produzir uma disfarçada transferência de dinheiro dos mais pobres para os mais ricos, de quem não tem veículo individual para quem pode ter um. A maioria da população fica então espremida nos ônibus e no trânsito. Na verdade a população mais pobre, que deveria ser o alvo, a grande beneficiária dos investimentos públicos, não recebe e ainda paga 3 vezes por isso. Paga os impostos, com os quais são feitos as vias, elevados, etc., paga a passagem de ônibus, e paga com tempo precioso de suas vidas presos no trânsito.
segunda-feira, 27 de setembro de 2010
TIRIRICA E O PRECONCEITO SOCIAL
Pretendia a algum tempo escrever alguma coisa sobre a candidatura do Tiririca à Câmara Federal, para discutir a indignação das classes "superiores" com o fato. É incrível como nestes momentos aflora o mais recolhido dos preconceitos. Então é assim: o Tiririca serve para entorpecer a ratatulha que assiste a tevê, mas não serve para ser deputado? Mas não foi necessário porque encontrei este excelente post de autoria do Brisola Neto, que transcrevo abaixo:
TIRIRICA E A MASSA MAL CHEIROSA
Não faço gracinhas nem piadas para ganhar votos. Não acho que o palhaço Tiririca seja o melhor candidato ao Legislativo. Nem mesmo o acho engraçado. Mas estou indignado contra esta onda elitista que se faz contra sua candidatura alegando que ele não sabe ler e escrever.
E daí se ele sabe apenas garatujar seu nome? E daí que ele seja desdentado? E daí que ele seja alguém que conseguiu projeção de um jeito esquisito?Quem achou que ele deveria ir para a televisão tem anel de doutor.
Quantos doutores picaretas há candidatos? Quantos “galãs” estão aí se candidatando sem discurso, sem propostas, sem compromissos?
Pode ser que Tiririca, eleito, seja apenas uma figura folclórica. Mas há dezenas de senhores bem apessoados que, se eleitos, serão apenas nulidades e, pior, tenham ambições de riqueza muito maiores que as do Francisco Everardo da Silva, nascido lá em Itapipoca, no Ceará.
Acho mais fácil dizer ao Tiririca, na hora de votar a redução da jornada de trabalho: Tiririca, os teus conterrâneos que trabalham lá em São Paulo não têm o direito de ter mais um tempinho com mulher e os filhos, do que falar o mesmo com um cidadão que tenha mais berço do que coração e que venha argumentar com “competitividade” e “custo Brasil”.
Não vi nenhuma indignação quando se trata de colocar o Tiririca nos lares e milhões de brasileiros, pela televisão.
Mas é provável que cassem sua candidatura, porque a elite brasileira acha que a política é só para a elite.
Fizeram um escarcéu quando fotografaram Lula, na sua vida privada, carregando uma geladeira de isopor. Aquilo é coisa para “inferiores”, não é?
Havia, no PDT do Rio de Janeiro, uma figura chamada Severino Pé-Pé. Era um mendigo, ou quase isso. Meu avô sempre pedia que o deixassem entrar nas reuniões do PDT, mesmo quando ele já estava um pouco alterado. Dizia: “deixa, deixa ele falar, porque ele é um homem que não tem nada a perder nem a ganhar, vai falar com sinceridade”.
Severino era um indigente, como se costuma dizer. Mas não era um bronco, ao contrário, era um homem até com a erudição de recitar Castro Alves horas a fio. Não se sabe o que o jogou à rua, uma desilusão, uma tragédia humana, um amor.
Mas o Severino que pedia, algumas vezes, uns reais para um trago, nunca pediu mais que isso.
De quantos doutores se pode dizer o mesmo?
quinta-feira, 26 de agosto de 2010
Pequenas mas grandes diferenças
Obviedade porque evidentemente não é possível fazer desaparecer o governo que o precedeu, da mesma forma que este não pode eliminar o governo que o precedeu, e assim por diante. Assim sendo, todo governo herda queira ou não coisas boas e ruins do anterior. E é irrelevante porque dada a tamanha diferença de resultados nos indicadores econômicos e principalmente nos sociais, que torna-se inócua qualquer apelação a este argumento. Por isso nem é necessário trazer aqui números e estatísticas que provem o que está acima.
- É como se um time ganhasse uma partida por 5 x 0 e o time derrotado reclamasse que o primeiro gol sofrido tivesse ocorrido em impedimento.
Da mesma forma, outra obviedade também é usada, a de que sempre governos posteriores vão ter desempenhos estatisticamente melhores pela simples razão do aumento populacional e o concomitante aumento da produção. Mesmo que seja óbvio, as estatísticas são tão humilhantemente superiores que tornam sem sentido encontrar motivos na administração anterior.
Dito isto, quero dar uma guinada neste ponto para ir onde está de modo claro a grande diferença entre os dois governos: a opção preferencial pelo pobre. Transferindo de forma consistente renda para as categorias mais pobres da população, o governo atual se descolou do anterior e deu um salto cujos resultados serão sentidos muito adiante. Seja através do bolsa-família, dos aumentos suscessivos do salário-mínimo, sempre acima da inflação, e das transferências inéditas para aposentados e pensionistas que agora representam 15% do PIB.
Mas há diferenças mais importantes, que evidenciam a preferência pelo pobre e pelo nosso povo. Recentemente, em 7 de maio de 2010, depois de ter reeguido a indústria naval brasileira, Lula foi a um estaleiro em Pernambuco para lançar ao mar o primeiro navio petroleiro construído no Brasil depois de décadas. Com sutis, mas profundas diferenças. Ao invés do navio receber o nome de algum almirante ou político, recebeu o nome de João Cândido, brasileiro, marinheiro, negro, filho de escravos e herói da revolta da Chibata, na luta contra a escravatura. E mais, ao invés de alguma primeira-dama ou alguma socialite, quem foi convidada para batizar o navio foi Monica Roberta de França, brasileira, negra, soldadora, operária do estaleiro, ex-empregada doméstica e desempregada a anos, que agora tinha trabalho. O país está trocando seus heróis. E o próximo navio irá se chamar Celso Furtado.
Por estas pequenas diferenças, que ficam enormes quando se olha do ponto de vista do brasileiro pobre, do brasileiro negro, que apelar para o reducionismo e a simplificação da inexequível continuidade não encontra respaldo.
quarta-feira, 26 de maio de 2010
A FALÁCIA DA MERITOCRACIA
No entanto neste âmbito, trata-se de uma alegação cínica e hipócrita de quem a usa como suporte para perpetuar seus privilégios de geração a geração. Atribuir unicamente ao indivíduo seus fracassos e conquistas pode parecer convincente na visão turva que a elite brasileira tem do mundo real. Para esta elite é cômodo pregar que a conquista de degraus econômicos e sociais deva se basear no mérito, porque afinal seus membros estão melhor preparados para isso. E não só porque estudaram nas melhores escolas, frequentaram os melhores cursinhos de inglês, fizeram intercâmbio, etc., mas porque existe uma rede de relacionamentos que ampara os seus membros.
Qual o mérito de um filho da classe média ou rica em tirar o lugar do filho da faxineira na universidade pública. Não há merito algum, não há justiça, é praticamente um jogo de cartas marcadas. No entanto nossas classes média e rica, acham que ambos têm a mesma chance, são iguais, é só um contra o outro numa prova de conhecimento. Pura hipocrisia. Dizem: -Ah, mas se estudar, qualquer um pode passar no vestibular, rico ou pobre. É verdade, toda regra tem excessão, e a excessão é o filho da faxineira entrar na universidade, como provam todas as estatísticas. Mas não quero me prender muito neste aspecto, vou supor que as condições de acesso a universidade sejam iguais e continuar o raciocínio sobre a ideologia da meritocracia.
Recentemente o IPEA pesquisou o nível de emprego no Brasil e constatou que nas classes inferiores, mesmo com a melhora do próprio nível de escolaridade, o índice de desemprego continuava alto. Mais alto que nas classes mais altas para a mesma escolaridade. Vejam que é outro mito pregado pela elite: se o indivíduo se prepara através do estudo terá mais chances no mercado competitivo. Aqui entra o que falei no segundo parágrafo, a rede de relacionamentos. A rede de relacionamentos é o entorno do individuo, representado pela classe social a qual pertence. Esta é a armadilha da classe média e da classe rica para manter seu status dominante. Como funciona?
Mesmo sendo um aluno medíocre, ou não tenha alcançado grau, os filhos da classe média sempre terão uma rede de apoio dentro da sua classe. Poderá estagiar na empresa do pai do colega, trabalhar em algum emprego médio na loja da amiga da mãe, etc. Mas jamais será um faxineiro. Na classe rica os privilégios são ainda maiores porque ele já sairá como dono, portanto pulará os degraus que os demais precisam subir e será logo diretor ou sócio.
No Brasil a vida e o futuro do indivíduo são determinados pelo local de nascimento. Se nasce na favela ou se nasce nos Jardins ou Leblon. Como discutir desempenho e sua avaliação dentro de um contexto desigual como este. O conceito ideológico do mérito individual parece sedutor a princípio, mas torna-se instrumento de injustiça social quando não atribui importância a variáveis sociais como origem, posição social, econômica e poder político.
quarta-feira, 14 de outubro de 2009
Quem avisa, amigo é.
Suponhemos que ele por acaso encontrasse com alguém pouco conhecido, em uma mesa de café, e esta pessoa lhe oferecesse um grande negócio. Digamos, a compra de um terreno plano, firme, em área de expansão, viável a construção, por um preço a um décimo do mercado. Mas que este negócio deveria ser fechado ali naquela hora, senão não haveria negócio. Se este meu amigo sacar o talão de cheque e pagar ao sujeito o valor pedido, eu chamaria isto de fé. Mas conheço este amigo razoavelmente bem para afirmar com certeza que ele não faria isto. Certamente antes de pagar qualquer quantia ao vendedor, ele solicitaria a apresentação de todos os documentos de propriedade do terreno, certidões negativas de cartórios, consultas de viabilidade de construção e iria visitar o terreno para ver com os próprios olhos o que estaria comprando. Isto é razão.
Vejam só, no entanto não é assim que ele age em relação a crença religiosa. Ele acredita e não quer nem ouvir falar. Ou seja, ele esta pagando o terreno sem vê-lo, ele tem fé no vendedor.
Bom, e o que eu tenho a ver com isto? Devo dizer que a resposta “nada” me passou pela cabeça, mas aí eu pensei na história acima. Vamos supor que eu estivesse ao lado deste amigo na ocasião, ouvisse a proposta, e soubesse que o negócio era um embuste, que o sujeito era um notório mal caráter, e que meu amigo seria enganado. Deveria eu ficar calado? Me conformar que eu não teria nada a ver com isto? Ou eu deveria avisá-lo que ele não deveria confiar naquele sujeito porque tudo o que ele dizia eram mentiras?
Por isso, quando o assunto é crença religiosa, eu entendo que aqueles como eu, que já acordaram da ilusão religiosa e de seus malefícios, têm a obrigação moral de se manifestarem. Obrigação, como no exemplo acima, de avisar a um amigo que ele está sendo enganado. Afinal devemos ou não lembrá-los que a vida e a natureza são tão bonitas que não há necessidade de inventarmos mundos paralelos onde seres pairam sobre nós e nos vigiam.
Este tipo de dicotomia certamente não acontece só com o meu amigo. É a troca da razão pela fé. E o que é a fé senão crer em algo sem comprovação. As religiões sabem disso, por isso proclamam a fé, pois a fé não se discute. A fé é seu principal dogma. E porque? Porque elas e suas crenças não passariam pelo crivo da razão objetiva. Às religiões não se permitem dúvidas.
- E realmente o que se pode dizer de algo que não se discute? Não há nem o que discutir.
quarta-feira, 22 de abril de 2009
Argumentos contra a política de cotas raciais
Argumentos contra a política de cotas raciais:
Primeiro: que a ação correta seria a melhoria do ensino público fundamental no Brasil, principalmente o ensino médio, que permitiria uma equiparação ou nivelamento de todos os candidatos ao ingresso na universidade.
Segundo: que a diferença principal entre ingressantes e não ingressantes na universidade no Brasil seria a econômica, ou seja, quem não ingressa na universidade é porque é pobre, independente da raça.
Terceiro: que o desempenho dos alunos beneficiados com as cotas, por serem oriundos de escola pública e não passarem no vestibular pelos meios normais, seria inferior ao dos alunos ingressantes sem as cotas.
Quarto: que não existem negros, ou que na verdade não existem raças diferentes, que não há branco, negro, amarelo, pardo,etc., portanto as cotas raciais são impraticáveis.
Quinto: que a constituição brasileira não permite a distinção por raça.
Sexto: que poderia causar o recrudescimento do rascismo no Brasil, ou seja, que política de cotas, poderiam aumentar a segregação racial ao invés de diminuir as diferenças.
Sétimo: que a vaga na universidade, bem como a ascenção a posições superiores em qualquer outra atividade, seria concedida por mérito.
O primeiro argumento, teóricamente está correto, no entanto pergunta-se: - o que se faz na prática para melhoria do ensino fundamental no Brasil? A décadas, desde que o Brasil é independente fala-se em melhorar a educação, repetindo “fala-se”. A décadas que escolas são sucateadas e que professores são marginalizados. Mas vamos supor que de uma hora para outra a sociedade se convença de melhorar o ensino, quanto tempo isto levará? Vamos dizer aos pobres e negros que esperem, que fiquem como estão por mais uma ou duas décadas? E não é esperando “deitado em berço esplêndido”, mas esperando na favela, no sub-emprego, na miséria, quando não na cadeia. Na realidade a situação hoje é esta: os negros correspondem a apenas 2% do contingente de universitários, apesar de representarem 45% dos brasileiros. E é nisto que a sociedade deve pensar, isto é um dado real, a melhoria do ensino fundamental é uma meta distante.
O segundo argumento tem muito a ver com o primeiro, numa relação de causa e efeito. A primeira vista o argumento parece verdadeiro, entretanto os números mostram que mesmo entre os pobres, o número de negros pobres está 47% acima dos brancos, ou seja, existem mais pessoas miseráveis negras do que brancas, e entre estas, os negros são os de menor salário e poder aquisitivo. A maioria (na realidade, uma minoria) dos alunos oriundos de escolas públicas que conseguem entrar em uma universidade pública no Brasil são brancos, ou seja, mesmo entre aqueles que conseguem vencer a diferença, os negros são minoria.
O terceiro argumento é um dos maiores preconceitos dos que são contra as cotas. Pesquisas em todas as universidades que adotaram as cotas mostram um desempenho superior dos alunos cotistas em relação aos demais. Em 2003, antes das cotas portanto, a Unicamp fez um levantamento em que descobriu que os egressos de escola pública, menos de 30% do corpo discente, apesar de enfrentarem maiores dificuldades materiais ao longo dos cursos, tinham médias 5% superiores aos demais. A partir desta constatação a Unicamp criou um sistema próprio de cotas aplicando 30 pontos a mais no vestibular para alunos de escolas públicas. Em 2005, a Unicamp comparou o desempenho dos 2.829 alunos que ingressaram no vestibular, nos quais 931 foram beneficiados pelos 30 pontos. Considerando somente a nota do vestibular (sem os 30 pontos) em apenas 4 dos 55 cursos os estudantes de escola pública tiveram notas superiores aos demais aprovados. Mas, no final do primeiro semestre letivo, os egressos de escola pública já estavam a frente de seus colegas em 29 cursos. A Universidade Federal da Bahia (UFBA) fez em 2005 uma avaliação de desempenho do primeiro grupo de estudantes que ingressou na Universidade pelo Programa de Ações Afirmativas (Cotas). Os dados revelaram que, em 56% dos cursos, os cotistas obtiveram coeficiente de rendimento igual ou melhor aos não-cotistas.
O quarto argumento beira a hipocrisia, ou seja, apelar para a biologia celular e o microscópico DNA para excluir os negros mais uma vez. É obvio que do ponto de vista biológico somos todos iguais, mas o rascismo não tem nada a ver com biologia, é cultural e histórico, é uma sórdida criação humana, e se baseia sim na cor da pele. A segregação é latente, as diferenças sócioeconômicas são enormes, o preconceito é histórico. No entanto, quando o ojetivo é a reparação destes erros argumenta-se que não existem raças? Mas só quando o objetivo é este. Porque então que quando se fala em segregação, exploração ou discriminação a primeira imagem que vem a mente é a de um negro? Na verdade todos sabem quem é a pessoa a que nos referimos por negros, mas o medo ou receio de dividir sua posição social, turva a vista e a mente do branco.
O quinto é o argumento legal ou juridico no qual se penduram os discursos contrários as cotas raciais. Vejamos o que diz a constituição. Sempre citado pelos que são contra a política de cotas, o inc. IV do art. 3º da C.F. diz: “Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: ... IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Mas se esquecem que no mesmo artigo temos antes do inciso IV, o inciso I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; e o inciso III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais. Ou seja, está na constituição brasileira sim que é função do estado reduzir as desigualdades e erradicar a marginalização. Outro argumento jurídico é o de que todos são iguais perante a lei, porém, como diria Millor Fernandes, uns são mais iguais que outros. No entanto, outro aforismo do direito diz: “não se pode tratar desiguais como iguais”.
O sexto argumento não tem o menor fundamento. Não há qualquer base ou motivação suficiente para ensejar qualquer tipo de atitude rascista dentro da política de cotas. O fato de parte das cotas serem destinados a pessoas autodeclaradas negras não significa racismo. Racismo é a forma de pensamento em que determinados indivíduos se acham superiores a outros baseados em características físicas hereditárias ou manifestações culturais. O fato de uma pessoa se autoafirmar negra, ou usar camisetas, botons ou outras formas de demonstração do que ela é, não é absolutamente uma atitude racista. O racismo é condenado universalmente e rigidamente punivel pelas leis brasileiras.
O sétimo argumento quer reduzir tudo o que acima foi afirmado, ao esforço pessoal, à dedicação desprendida na preparação para o vestibular, ou seja, o mérito. Quem não se aplica não passa no vestibular. Neste quesito é que não há comparação. Então trabalhar na infância e juventude, ser o único sustento da família muitas vezes, cuidar de pais e irmãos menores, não são responsabilidades. Talvez maiores que o vestibular quando se trata da própria sobrevivência. E ainda ter que estudar longe de casa, e a pé, não ter material escolar adequado, e frequentar aulas muitas vezes a noite. Comparar estes com aqueles que não tem obrigações com o sustento da família, cujo único dever é o estudo, que estudam em escolas particulares, têm aulas de reforço, cursos de línguas, intercâmbios internacionais, boa alimentação e transporte. Quem é o mais dedicado? De quem é o mérito?
Termino este artigo afirmando que não considero a política de cotas uma solução em si, mas que tendo em vista as graves distorções sociais em que vivemos e o estado em que vive a maioria da população brasileira, é uma necessidade imediata.
Tambem posso dar um testemunho de experiência pessoal, pois sou professor de escola pública de nível médio, fato que me orgulha, a mais de 25 anos, e posso afirmar que mesmo sendo pública, que alunos negros em minhas classes não passaram de uma dezena nestes 25 anos.